sábado, 26 de fevereiro de 2011

O desequilíbrio harmonioso


Existe um texto do Rubem Alves que li recentemente e, mais uma vez, senti como se ele estivesse escrevendo para mim. Talvez porque tenha acertado em cheio uma de minhas primeiras e recorrentes preocupações com o que significa ser um cientista, em termos pessoais. É claro que é uma visão discutível, mas quantos não conheço serem exatamente assim? E quantas outras atividades aparentemente incongruentes eu já não exerci? Assim sendo, também mais uma vez, ele aumenta minha sensação de que esse meu caminho tortuoso e cheio de contradições internas e externas é muito mais interessante do que errado. O que eu antes chamava de equilíbrio dinâmico, e que hoje chamo de desequilíbrio harmonioso, entre os meus anseios e vontades, parece-me cada vez mais confortavelmente comigo mesma.

Espero não estar infringindo (muito) os direitos autorais reproduzindo o texto aqui. Procurei em algum outro lugar, para apenas incluir o link; não encontrei. Vai aqui então, com referência bibliográfica e tudo o mais. E que sirva de estímulo a outros lerem mais textos dele…

ACONSELHO-O A SE CONFORMAR

Você viajou, veio de longe para conversar comigo. Queria que eu o ajudasse a colocar ordem no seu albergue. O corpo é um albergue, você sabe. Nele moram muitos pensionistas com a mesma cara. Lição que aprendi de um demônio que, respondendo a uma pergunta de Jesus sobre o seu nome, respondeu que era Legião, porque eram muitos. O caso mais famoso é o de Fernando Pessoa, nome de batismo de um corpo em que muitas pessoas diferentes moraram, algumas ao mesmo tempo, outras sucessivamente, cada uma pensando e escrevendo de um jeito. Sobre o assunto aconselho você e todos os leitores a verem o filme Quero ser John Malcovitch.

Você me contou sobre alguns dos seus pensionistas. Primeiro o palhaço. Não por acidente, mas por vocação e profissão, com nariz vermelho e tudo o mais, que divertia as crianças. Eis aí um personagem que precisa viver sempre. O riso é, talvez, o remédio mais poderoso para nos ajudar a conviver com a tristeza. O riso do palhaço é sempre um raio de luz na escuridão. Nietzsche se dizia palhaço. Palhaço e poeta. As duas vocações se complementam.

Outro foi um vendedor de cachorro-quente. Para ganhar a vida. Diferente. Você se divertia com os seus cachorros e estava sempre inventando novas raças.

Agora é um professor universitário com a terrível responsabilidade de escrever artigos científicos e se comportar devidamente. Advirto-o de que palhaços e professores universitários não convivem bem. Você sabe disso por experiência própria. Palhaços são leves, flutuam; professores universitários são graves, afundam. É proibido fazer humor em teses de mestrado e doutorado.

E há, por fim, o mais terrível de todos os personagens: o apaixonado. A paixão é uma perturbação da tranquilidade da alma. Abelardo, professor universitário, se deu muito mal, permitindo-se ficar apaixonado pela Heloísa. Foi a sua desgraça. A estória dos seus amores está contada no filme Em nome de Deus. Ele mesmo, Abelardo, rigoroso professor de filosofia, confessou que, tomado pela paixão, deixou de preparar suas aulas e passou a dedicar-se à poesia. Como você sabe, poesia não dá respeitabilidade acadêmica.

Tudo seria simples se cada um dos personagens tivesse morando no seu corpo numa temporada de curta duração, partindo depois para destino ignorado. Não é esse o seu caso. Na realidade, suspeito que haja muitos outros, sobre que você não falou. Falarei sobre um deles, no final. Acontece que todos eles continuam a morar no seu albergue, numa orgia que não lhe dá sossego.

Quero dizer-lhe duas coisas. Pelo que ouvi, não me parece que qualquer um deles tenha disposição para mudar de casa. Isso é ruim, porque você nunca terá paz. Seria tão melhor se você fosse 100% cientista, que só pensasse em pesquisa e artigos! Você teria uma única direção - e mesmo as suas possíveis paixões seriam submetidas ao critério acadêmico. Você se casaria com uma cientista, trabalhariam os dois nos domingos em suas pesquisas, e nenhum reclamaria do outro. Nenhum estaria querendo ir ao cinema enquanto o outro está no computador tentando terminar um artigo. Mas esse não é o caso. Seria muito chato.

Não sendo esse o caso, aconselho-o a se conformar. Ofereço-lhe, como consolo, um aforismo de Nietzsche: "O preço da fertilidade é ser rico em oposições internas. A gente permanece jovem somente enquanto a alma não se espreguiça e deseja a paz." Você está cheio de oposições internas. Se essas oposições lhe tiram a paz, você deve saber que são elas que o fazem interessante. É delas que surgem os pensamentos mais bonitos.

Não sei por que você não continua a ser palhaço e a alegrar as crianças. E por que não fazer isso na universidade? Você tem vergonha? Roupa de palhaço não combina com beca acadêmica?

Quanto às suas habilidades de fazedor de cachorro-quente, acho melhor cuidar delas com cuidado, em particular. Nunca se sabe o que o futuro nos reserva. Sei de professores que passaram a ganhar a vida fazendo suco e vendendo pão.

E vi que seu personagem cientista está a serviço de um personagem artista. Você é um cientista de lagos. Para a ciência, lagos são laboratórios. Muito se pode aprender do seu estudo. Mas você, além disso, ama os lagos pela sua beleza. Você cuida dos lagos pela tranquilidade que eles comunicam. Você tem alma de jardineiro.

Aceite a orgia dos pensionistas com alegria. São poucos os que têm esse privilégio. Apareça de novo quando quiser.

Rubem Alves. Se eu pudesse viver minha vida novamente… 21ª edição, Verus Editora, 2010 .